20 de novembro de 2010

O Papel da Ação Social na Evangelização e Missão na América Latina

RESENHA
19.11.2010
Everson Alencar [*]


NASCIMENTO FILHO, A. J. O Papel da Ação Social na Evangelização e Missão na América Latina. Campinas: LPC Comunicações, 1999. 105 p.


Antônio José do Nascimento Filho é graduado em teologia pelo Seminário Presbiteriano do Recife (1980) bem como Mestre (1991) e Doutor (1993), também em Teologia, pelo Reformed Theological Seminary - RTS em Jackson, no Mississipi, EUA; é também Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo. Além de um currículo invejável, o autor é reconhecido pelos amigos e pelos alunos por seu carisma, sua erudição bibliográfica e experiência obtida em mais de 30 anos de atuação teológica.

O livro é fruto da tese de Mestrado obtida em 1991 que veio a ser publicada no Brasil pela LPC no ano de 1999.

A título de contextualizar a obra, cabe lembrar a Guerra Fria que compreendeu o período entre o final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a extinção da União Soviética (1991). Guerra essa que se deu, sobretudo, em âmbito ideológico distorcendo e contorcendo termos como social, ação social, socialismo e afins. Neste entrecho que é possível compreender a importância e riqueza de uma obra desse nível.
Se hoje, teoricamente, a ação social é bem aceita e até estimulada o livro pode, a princípio, parecer desatualizado e fora de contexto. Mas, ao longo da leitura, percebe-se a perpétua relevância do assunto que deve ser SEMPRE resgatado.

O capítulo 1 (Contexto do problema e sua significância) introduz brevemente o contexto da América Latina posicionando-a como uma região de grandes possibilidades por trás dos obstáculos das diferenças sociais.
Com relação à obra, esse capítulo define:

1. O problema: refletir sobre a relação entre atividades sociais e evangelismo
2. As pressuposições básicas: parte-se do ponto de vista cristão protestante
3. A terminologia:
a)    Missão (derivada do latim missio (enviar). Sentido amplo: tudo que a igreja faz; sentido estrito: atividade missionária entre povos de culturas diferentes)
b)    Evangelismo (derivado do grego euaggélios (boa-nova). Sentido amplo: tudo que a igreja faz para proclamar o reino de Deus; em sentido estrito: três categorias: evangelismo entre os não alcançados, entre culturas diferentes e aprofundar o evangelho entre os já alcançados)
4. E a metodologia: combina análise bíblica, teológica e histórica.

O capítulo 2 (A revisão da literatura) inicia citando alguns conceitos de igreja segundo o que ela é, o seu papel, suas tarefas e sua comissão divina. Sendo que a essência da igreja reside na sua missão de anunciar o evangelho, pergunta-se “como anunciar eficazmente?” A fé cristã não pode se limitar à proclamação verbal. Ela deve se tornar mais sensível ao sofrimento humano e mais envolvida no alívio.
O contexto da América Latina sugere os seguintes desafios:

1. Doenças, drogas e alcoolismo: problema que deixa até as autoridades dos estados pessimistas, e quanto menos assistência social há disponível, mais difícil para o usuário livrar-se da armadilha;
2. A situação da igreja: o sec. XIX apresentou um crescimento extraordinário do protestantismo, situação que preocupou até mesmo a Igreja Católica. O autor enxerga um grande potencial missionário para essa região, que tem aspectos semelhantes ao da Antioquia bíblica, como, por exemplo, seu caráter multi-étnico e cosmopolita.
3. Desafio social: observa-se, mesmo entre os evangélicos, os efeitos da explosão demográfica, da desesperança social e da incredibilidade política, que refletem em altas taxas de pobreza, violência, etc. Desse contexto já surgiram movimentos que se situavam ou no extremo social (teologia da libertação e movimentos marxistas-socialistas) ou no extremo espiritual relegando-se à inatividade e sustentando que o céu seria a compensação para a pobreza. Mas o autor ressalta que evangelismo proclamado fielmente satisfaz não somente as necessidades das almas, mas também as materiais.

Inicia-se então uma discussão sobre qual a relação entre missão e evangelismo. E entre evangelismo e ação social. Seriam semelhantes ou distintos? O livro não conclui a questão, apenas cita opiniões que passam por diversas matizes desde quem defende ser a única obrigação da igreja salvar almas à posição de que é dever da igreja prestar assistência social a TODAS as pessoas. Apesar de pouco exploradas, essas perspectivas levam a refletir sobre as conseqüências que essas diversas nuances conceituais podem produzir quando definidas conscientemente pela igreja.

O capítulo 3 (Fundamentos bíblicos e teológicos na questão social) parte em defesa da ação social como parte da missão da igreja. Para isso, realça diversos argumentos dentro do Antigo Testamento bíblico, no Novo Testamento e em doutrinas fundamentais do cristianismo.

O Antigo Testamento revela a preocupação de Deus com os desfavorecidos. Cada vez que aparecem as palavras pobre, necessitado, oprimido, forasteiro, etc. Elas são dotadas de conteúdo moral se relacionando com a exigência de justiça divina. Pois, o Senhor é o Deus que ama a justiça e odeia a maldade. Esse apelo social é representado na lei de Deus para o povo, que normatiza o jubileu (a cada 49 anos os escravos são libertos, as dividas suspensas e a terra retorna aos proprietários) o ano sabático ( a cada 7 anos devem descansar a terra, os escravos e os animais) o dízimo do 3º ano (que é reservado para ficar na cidade de origem e servir aos estrangeiros, órfãos e viúvas) e a respiga (que sugere deixar parte da colheita para os pobres). Coerentemente, os profetas têm como ponto central em seus ministérios proclamar a justiça social.

O Novo Testamento, diferente do que muitos podem pensar, não veio anular o Antigo, pelo contrário, aclara-o e o consuma. A nova aliança condensa o apelo social em dois mandamentos o de amar a Deus e amar ao próximo. E a exegese de Jesus deixa clara a grande dimensão da palavra próximo, abraçando todos, até mesmo os inimigos. Não sobram dúvidas que biblicamente a missão da igreja é mais que proclamação verbal.

A construção teológica também é rica em argumentos pró-social. A doutrina de Deus o apresenta como Deus de justiça e misericordioso. Deus preocupado com a humanidade e Deus cujo caráter é modelo de ação para os cristãos. A doutrina de Cristo é clara no seu empenho social, no seu coração amoroso e nos seus exemplos de serviço sacrificial. A doutrina do Reino reforça a exigência da pratica social, pois, mesmo sendo a igreja uma sociedade dos homens, o reino é governo de Deus, cuja vontade foi revelada e deve ser obedecida. A doutrina do homem qualifica o valor da vida humana, portadora da incalculável Imago Dei. E por fim, a doutrina da igreja defende sua dupla identidade. Chamada para apartar-se da maldade do mundo, mas também enviada ao mundo para testemunhar a salvífica mensagem de boas novas.

No capítulo 4 (O testemunho histórico e a ação social cristã) a história da igreja é maravilhosamente apresentada de uma perspectiva que foca os momentos em que o evangelho foi fielmente pregado e vivido. Os frutos são argumentos incontestáveis sobre o fato de que a missão da igreja é mais que mera proclamação verbal, mas também atitude social.

Por duas vezes em Mateus Cristo desafia os críticos a ir e aprender o que significa misericórdia (Mt9.13; 12.7) Misericórdia é bondade e compaixão independentemente de que quem a receba não possa retribuir ou mesmo quando a severidade é merecida.

A primeira igreja cristã era minoria, mal compreendida e constantemente desafiada a praticar misericórdia. Os exemplos de misericórdia ocorrem tanto em nível individual (Tiago, Pedro, Paulo, etc.) como em nível institucional (doações, assistências sociais, etc.).

Misericórdia também é encontrada nos exemplos dos pais da igreja cuja fé era traduzida em palavras e ações. Com uma fé simples, acreditavam na volta iminente de Cristo, temiam o julgamento e tinham grande esmero em atender à Grande Comissão. Na era Constantiniana a assistência social tornou-se monopólio da igreja que estabelecia e mantinha hospitais, orfanatos, abrigos, etc.

Na idade média a institucionalização da igreja atingiu seus extremos, mas as contribuições sociais do monasticismo não podem ser ignoradas. Tiveram grande importância na atividade missionária, na educação, na agricultura e na luta contra a pobreza e a opressão.

A reforma teve um grande aspecto social observado nos próprios ícones da reforma. Tanto Lutero quanto Calvino têm um testemunho histórico de envolvimento ativo nas causas dos oprimidos, dos estrangeiros e dos desfavorecidos. Apesar da ênfase de Lutero de que a contribuição social não garantia o perdão dos pecados, reflexo de sua luta contra as indulgências, ele não descartava o valor das boas obras, e escrevera uma carta aberta ao Estado solicitando reformas sociais e econômicas em favor da vida dos pobres. Calvino, mesmo na qualidade de refugiado da guerra religiosa, nunca deixou de acolher outros refugiados com abrigo e comida. Sua sensibilidade para as necessidades e a posição do individuo dentro da sociedade rendeu frutos permanentes na área educacional, de caridade, etc.

Os movimentos cristãos pós-reforma têm em comum o desejo de renovação da igreja, a proclamação do evangelho e o comprometimento social. Criam que o Reino de Deus, um reino de justiça, podia e devia ser buscado ainda aqui na terra. Foi assim com o movimento pietista, o reavivamento wesleyniano, os despertamentos da América do Norte e os movimentos missionários protestantes. Charles Finney defendia que o evangelho impulsiona à reforma social, a negligência aflige o Espírito Santo e impede o reavivamento.

No capítulo 5 (Conclusões e recomendações) o autor resume brevemente o conteúdo visto cujo objetivo é compreender o papel da atividade social na missão evangelística da igreja. Em suas recomendações o autor se centra em três ênfases. Primeiro, não negligenciar o contexto de onde a mensagem do evangelho é proclamada. Jesus é o modelo. Identificou-se e interagiu com a cultura judaica de sua época transcendendo-a. O evangelho é vivo e se dá em interação contínua com a cultura de destino. Segundo, a igreja é uma comunidade misericordiosa e amorosa. O comprometimento de levar a mensagem integral para o homem integral é cada vez mais relevante na missiologia. Terceiro, ênfase nas escolas confessionais e na assistência médica. A educação é de grande importância, e tem sido uma estratégia valorosa para o protestantismo no sentido de fomentar a esperança social e o crescimento integral da sociedade. A assistência médica tem sido não só estratégia de penetração do evangelho em diversas regiões desoladas, mas também motivo de orgulho e motivação para missões. Significa, a exemplo direto do ministério de Cristo, arrebanhar pessoas demonstrando amor e compaixão, pois “Jesus andou curando, ensinando e pregando a boa-nova do Reino”.

O livro deixa a impressão de ter ficado no raso. Por exemplo, quando se discute Missão e Evangelismo (p.23) são citadas cinco opiniões que os consideram termos semelhantes e quatro que concluem serem termos distintos. Mas, fica em aberto qual a proposta do livro, ou a conclusão sobre as implicações de se optar por uma ou outra, se irrelevantes, inconcludentes, etc. O mesmo ocorre quando se relaciona ação social e evangelismo (p.26).

Apesar de o livro se delimitar muito claramente ao contexto da América Latina, pouca informação sobre a região é passada. Tanto os dados como as recomendações são em termos gerais. Desde Lausanne 1974 muito se tem produzido em termos de teologia integral, e a América Latina é um expoente no assunto. Mas, praticamente todo embasamento do livro é Europeu ou Norte Americano. Assim fica alheio à proposta de ser “local” que o título oferece.

O autor, pessoalmente em uma conversa, esclareceu que a tese original somava mais de 480 páginas. A editora se mostrou interessada em publicar, mas, alegando estar preocupada com o ambiente cultural brasileiro, que segundo ela “brasileiro não gosta de ler”, reduziu drasticamente o volume da obra para 105 páginas.

Se por um lado o livro deixa a desejar na contextualização América Latina, por outro lado sua contribuição para o diálogo evangelismo, missão e ação social é inestimável. Fica incontestável que existe uma relação inseparável entre evangelismo e reforma social. Relação triplamente confirmada: na bíblia, na teologia e na história. E o livro é um grande passo nesse diálogo que tem relevância perpétua devendo ser sempre pensado, discutido e fomentado.


[*] Everson Alencar é bacharel em Comunicação Social (2006) e estudante de Teologia no Mackenzie (inicio 2009).

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